texto publicado ontem (sexta), no Público, por Miguel Sousa Tavares:O pior que pode acontecer a uma classe sócio-profissional que decide fazer greve é essa greve não incomodar ninguém nem impressionar ninguém. Porque uma greve é uma forma de pressão e não há pressão alguma quando a greve não incomoda ninguém. Uma greve de transportes, uma greve da TAP, uma greve dos trabalhadores da EDP, incomodam milhares ou milhões. Uma greve na justiça não incomoda ninguém: para aqueles que esperam um ano por um simples despacho e dez anos por uma sentença, uma semana de greve de juízes, magistrados do Ministério Público e funcionários judiciais não incomoda rigorosamente nada.Mas os tribunais são também órgãos de soberania e os magistrados eram, há dez anos atrás, a classe sócio-profissional mais considerada nas sondagens de opinião. Uma greve deles, não incomodando em nada, poderia, todavia, impressionar a opinião pública. Mas não é o caso. A única pessoa que, por dever de ofício, parece impressionada é o sr. Presidente da República. O comum dos cidadãos tanto se lhe dá, como se lhe deu.
Para aqui chegarmos, foi preciso que ambas as magistraturas judiciais tivessem tratado diligentemente de desbaratar em dez anos o prestígio de que, até então, justamente gozavam. Hoje, os juízes e o Ministério Público podem gritar aos quatro ventos que estão a ser maltratados e desconsiderados que ninguém mexerá uma palha para os defender. Para quê defender quem não nos defende? Quem está sempre pronto a reclamar por isto, por aquilo e por aqueloutro, pelas férias, pelos subsídios, pelas regalias, e jamais pelos direitos dos desgraçados que esperam em vão por uma justiça que é quase sempre má ou tardia? Nunca pela cabeça dos senhores magistrados passou a ideia de se imaginarem na pele de um cidadão que é vigarizado por terceiro e que contrata um advogado a quem paga, sustenta despesas prévias para meter a acção em tribunal e que confia que, tendo tudo feito conforme é recomendável num Estado de direito, a justiça lhe há-de reconhecer a sua razão, em tempo útil para salvaguardar a sua actividade profissional e recompensá-lo dos prejuízos sofridos. E que, afinal, espera em vão, anos a fim, até realizar ou que a justiça chega tão tarde que já não lhe serve de nada e apenas gastou mais dinheiro, ou então que lhe é negada a razão, a pretexto de formalismos processuais e bizantinices jurídicas que ninguém de boa-fé consegue reconhecer como justiça. Mas nada disso incomodou jamais os senhores magistrados. Nunca os incomodou o facto de o objectivo essencial da sua actividade - que é o serviço público - servir para tudo menos para cumprir a sua função. Como se a justiça, primeiro que tudo, devesse servir os que a servem e não os que a ela recorrem e a pagam.
Quando um cidadão comum olha para o estatuto profissional de um juiz, o que vê é que eles, assim que saem da escola, têm emprego garantido, começam por ganhar 2330 euros, mais 700 de subsídio de renda de casa (que manterão ao longo de toda a carreira, mesmo depois de reformados...), têm um regime especial e privilegiado de segurança social (o qual é pago em mais de 50 por cento pelos utentes da justiça), têm mais de dois meses de férias por ano, são independentes, isto é, não respondem perante ninguém, são irresponsáveis nas suas decisões, por mais incríveis que estas possam ser, são inamovíveis para sempre, por piores que sejam, e só respondem disciplinarmente perante os seus próprios pares, com toda a escandalosa benevolência que daí tradicionalmente resulta. Que outro emprego existe assim no mundo normal onde as pessoas vivem sem ser à sombra do Estado?
Se formos ainda mais longe, constataremos que, em comparação com países desenvolvidos e próximos, como a Espanha, a Alemanha, ou a França, temos mais tribunais per capita, mais juízes e funcionários por tribunal, mais dinheiro do Estado aplicado no sector, custas mais caras a pagar pelos que recorrem aos tribunais, e mais tempo de espera por uma decisão. O que resta, então, para nos comovermos com as dores dos juízes e magistrados do Ministério Público? O muito que o país lhes deve por, simplesmente, existirem?
Miguel Sousa Tavares, in Público (30.09.05)