O modelo social americano
Ao indicar, quando era presidente da Comissão Europeia, que a Europa procurava um modelo económico-social alternativo ao norte-americano, Jacques Delors muito provavelmente não tinha em vista rejeitar tudo quanto proviesse dos Estados Unidos em matéria de assistência social. E, mesmo que não se pretendesse utilizar qualquer das suas experiências, seria elementar conhecer de que se tratava. Lamentavelmente, não é isto que acontece.
O jornal espanhol El Mundo publicou em 1 de Setembro um extenso trabalho sob o título "A pobreza dispara nos Estados Unidos". Os dados apresentados são do departamento de impostos. Nos Estados Unidos, esclareça-se, todos os maiores de idade são obrigados a tornar-se contribuintes, ainda que na declaração anual de rendimentos fiquem isentos de impostos. O ano fiscal abrange o segundo semestre de determinado ano e o primeiro do seguinte. De modo que, geralmente no mês de Agosto, tornam-se públicos os dados relativos à distribuição da população segundo faixas de rendimentos.
As famílias com rendimentos inferiores a 20 mil dólares anuais formam um grupo à parte por uma razão que o trabalho mencionado omite. São beneficiárias de um programa de rendimento mínimo, financiado pela Segurança Social, fundo constituído com contribuições obrigatórias universais. As famílias que não alcançam esse patamar recebem, do mencionado fundo, a correspondente complementação. Têm ainda acesso à assistência médico-hospitalar mantida pelo programa denominado Medical Care, mencionado no trabalho de El Mundo, mas de molde a minimizar o seu significado.
No exercício fiscal 2004-2005, as famílias com rendimentos inferiores àquela quantia corresponderam a 12,7 por cento da população. O autor do texto não se dá conta da real magnitude dos números com que está a lidar e, ainda que efectue a conversão em euros (pouco menos de 16 mil; mais ou menos 1350 mensais), tenta apresentar o quadro como se correspondesse à situação de indigência. Tanto nos Estados Unidos como na Europa, rendimentos de 1350 euros mensais de modo algum configuram situação de indigência. Mais grave é a suposição de que a Social Security equivaleria ao Welfare europeu.
O programa de rendimento mínimo nos Estados Unidos é uma das questões mais discutidas no país e é extensa a bibliografia correspondente. Não teria cabimento tentar resumi-la, bastando referir que o objectivo é adoptar iniciativas (cursos ou o que seja) que lhes permitam ganhar o próprio sustento. Da subida da presença de mães solteiras tem resultado que não tenha vindo a acontecer uma maior redução. Em 1982, as famílias pobres correspondiam a 15 por cento da população. Nos meados da década baixou um pouco, mas desde então não se verificam alterações substanciais.
O Welfare norte-americano é constituído pelos fundos de pensões (aposentadoria) e seguros (saúde e desemprego). Esse mecanismo tem o mérito de, ao invés de financiar o consumo, como sucede na Europa, se destinar a promover investimentos. Nesse particular, não parece ter sido suficientemente valorizada a legislação que o ex-chanceler alemão Gerhard Schroeder conseguiu aprovar em 2001, depois de longa negociação com os sindicatos, pela qual se introduziu na Alemanha o fundo de pensões.
Ainda que valha a pena voltar ao assunto, noutra oportunidade, esquematicamente o que se passa é que quem desde então ingressa no mercado de trabalho contribui apenas para assegurar, como reforma, um patamar mínimo. Poderá complementá-la ingressando num dos fundos que estão a constituir-se. Os que se achavam integrados no antigo sistema vão passar ao novo. A transição revelou ser a questão-chave da negociação. Abrangerá as três primeiras décadas deste século.Tendo liderado a negociação, o poderoso Sindicato dos Metalúrgicos firmou um acordo com a entidade patronal (Gesamtmetal) no sentido de constituir um fundo de pensões. Dando conta da iniciativa ao jornal parisiense Le Monde, naquela ocasião (Agosto de 2001), o vice-presidente do Sindicato, Jungen Peters, afirmou o seguinte: "Com cerca de 3,5 milhões de assalariados, representamos um importante pólo financeiro perante os bancos e seguradoras. Isto significa que podemos negociar condições particularmente interessantes e reduzir enormemente os custos de administração. As economias assim alcançadas beneficiarão naturalmente os nossos filiados."
No encaminhamento da proposta, o Governo indicou que os objectivos principais seriam: em primeiro lugar, proporcionar o aparecimento de nova forma de investimentos, a exemplo do que ocorre com os fundos de pensões norte-americanos; e, em segundo, reduzir os custos da mão-de-obra. E assinalou que tais resultados deveriam acarretar uma redução do desemprego.Caberia, pois, discutir se a introdução do fundo de pensões invalida a diferenciação do modelo social europeu em relação ao americano.
António Paim, Professor de Ciência Política (in Público)