domingo, setembro 18

A BdB feita pela Helena Matos

Setembro negro por Helena Matos

"O filme egípcio Le Jouet Rouge (O Brinquedo Vermelho) foi exibido por engano durante o festival de filmes documentário de Ismailia, em Israel.Um "erro técnico" levou à projecção do filme israelita, explicou à agência de notícias AFP o crítico de cinema Ali Abu Chady, presidente da mostra.Segundo ele, o filme egípcio fazia parte de um programa da UNESCO de três filmes que não estavam classificados na ordem indicada pela documentação apresentada pela organização. Por isso, o filme egípcio foi exibido por engano no lugar de um indiano.

Esse erro causou surpresa entre os espectadores israelitas. Os organizadores da mostra tiveram de publicar imediatamente um comunicado explicando a situação."Não permitiremos nunca a projecção de um filme egípcio, seja quem for o produtor, no festival de Ismailia, já que isso contraria o nosso repúdio a toda normalização das relações culturais" entre Egipto e Israel, disse Ali Abu Chady."

Esta notícia não é verdadeira. Aliás como não terão deixado de notar alguns mais dados à geografia e ao roteiro dos festivais de cinema, Ismailia fica no Egipto e não em Israel. Mas basta trocar egípcio por israelita para que tudo aquilo que é aqui narrado ser absolutamente verdadeiro. Por outras palavras num festival de cinema que teve lugar no Egipto foi projectada uma curta-metragem israelita. Os espectadores ficaram surpresos e os organizadores representados pelo presidente da mostra, o crítico de cinema Ali Abu Chady, rapidamente explicaram que tal se deveu a um erro técnico. Em causa não estava o filme que narra a história dum transistor vermelho, que, nas mãos duma criança, viaja entre árabes e judeus. Em causa está simplesmente o facto de o filme ser israelita: "Não permitiremos nunca a projecção de um filme israelita, seja quem for o produtor, no festival de Ismailia, já que isso contraria nosso repúdio a toda normalização das relações culturais" entre Egipto e Israel, declarou Ali Abu Chady.

Face à enormidade destas afirmações esperei pela expressão de vivos repúdios por parte das associações anti-racismo e das organizações internacionais dos direitos humanos. Quiçá por cordões humanos em frente às representações diplomáticas do Egipto. Pelas denúncias daqueles que a si mesmos se designam como activistas da paz. Da solidariedade de actores e realizadores para com Dani Rosenberg, o realizador do filme em causa.

De actores, produtores e realizadores dizendo que jamais aceitariam ir ou participar naquele festival enquanto vigorasse tal atitude. Mas esperei em vão. Curiosamente, dias antes deste festival de Ismailia, a Europa tinha sido palco de várias declarações de estrelas de cinema norte-americanas ,que, a propósito do Katrina, diziam que tinham muita vergonha de serem americanas. Estavam no seu direito. A democracia impera por estas paragens e cada um é livre de dizer o que quer. Não faço ideia se sentem vergonha por aquilo que sucedeu a Dani Rosenberg. E não faço ideia (seja sobre a dimensão do seu silêncio ou das suas palavras), porque o acto de discriminação de que o filme israelita foi alvo praticamente não chegou a ser notícia.

O relato deste incidente ou foi atirado na qualidade de breve para as últimas páginas dos jornais ou nem sequer existiu. Porquê? Porque está implícito que o racismo contra os cidadãos de Israel não só é legítimo, como uma quase fatalidade. O que aconteceu neste festival de cinema foi racismo puro. As declarações do senhor Ali Abu Chady são iníquas e condená-lo-iam ao ostracismo entre os seus pares, caso o alvo do seu ódio não fosse Israel. Mas dada a nacionalidade dos envolvidos tudo é aceite com uma naturalidade perturbante.Aliás o que sucedeu neste caso no campo da cultura - sempre tão activo na solidariedade com todos os movimentos que se apresentem como libertadores da Palestina tem também um largo rasto no desporto. Nos Jogos Olímpicos de Atenas, que tiveram lugar o ano passado, o judoca iraniano Arash Miresmaeili recusou-se combater com o judoca Ehud Vaks. Porquê? Porque Ehud Vaks é israelita. Arash Miresmaeili foi excluído dos jogos e recebido como um herói no Irão. Às perguntas: poderia ter Arash Miresmaeili feito outra coisa? Como reagiriam as autoridades iranianas caso Miresmaeili tivesse combatido com Vaks? O que lhe aconteceria se perdesse?... outra questão se deve juntar: a Federação Nacional de Judo do Irão é aceite internacionalmente? País algum a boicotou como no passado aconteceu com os atletas e os dirigentes desportivos da África do Sul? Se tal não aconteceu, devia ter acontecido. Afinal a Federação Nacional de Judo do Irão não só defendeu a atitude de Arash Miresmaeili como propôs que ele recebesse os 94.000 euros oferecidos pelo Governo iraniano a cada um dos atletas que arrebatasse uma medalha de ouro em Atenas.

Infelizmente, este episódio de Atenas está longe de ser caso único. Mahed Malekmohammdi e Masoud Haji Akhoundzade (Campeonato do Mundo de Judo, 2001), Hani al-Hammadi e Nabeel al-Magahwi (Campeonato Mundial de ténis de mesa, 2003) são atletas que se recusaram a combater com israelitas.O que é assustador é que, apesar das condenações diárias do racismo, continuamos, tal como no passado, a tolerar o direito ao racismo. A consagrar a tal excepção, que é o mesmo que validar a regra. Por exemplo, como se podem condenar os jogadores e técnicos de futebol que emitem comentários racistas acerca dos jogadores negros e depois tolerar estas mesmas atitudes quando os alvos do racismo são atletas israelitas?

Por fim, apenas mais uma questão: os palestinianos. Está certamente na altura de se discutirem os seus direitos. E estes direitos ou a ausência deles estão longe de ser um problema que diga maioritariamente direito a Israel. Como vai ser a vida dos palestinianos na Faixa de Gaza, agora que Israel retirou? Quem aplica a lei? Para quem vão os fundos da UE? O que se está a passar com palestinianos que residem no Líbano? Quais são os seus direitos?... Por amarga ironia, outra das perversões do anti-semitismo é que a questão dos direitos dos palestinianos só é colocada quando isso permite confrontar Israel. Fora desse âmbitos, os promotores da sua causa fecham piedosamente os olhos. Tão piedosamente que quase se deixou cair no esquecimento o massacre de milhares palestinianos às mãos do Exército jordano. Temendo que os guerrilheiros palestinianos promovessem um golpe de Estado e passassem a governar a Jordânia com o apoio da Síria, o rei Hussein da Jordânia mandou o seu Exército avançar para os campos que os guerrilheiros palestinianos haviam instalado no país e para onde haviam conduzido vários aviões comerciais que haviam desviado. Morreram milhares de palestinianos. Quantos não se sabe ao certo. Sabe-se apenas que aconteceu em Setembro de 1970. Mais precisamente há 35 anos, no dia 16 de Setembro.

Nota: texto publicado ontem (Sábado) no Público, que reproduzo na íntegra; quanto às questões de direito de autor eu replico que paguei o jornal, porque o paguei, e só faço copy paste no dia seguinte à publicação do texto pelo jornal.