A cultura do antifascismo
A quem não assina o Público disponibilizo o artigo desta semana da Helena Matos.
A polémica surgida no PÚBLICO a propósito de uma investigação de Adelino Gomes sobre a destruição de livros de autores considerados reaccionários é sintomática de um dos mais profundos paradoxos do nosso regime. Refiro-me à equivalência entre antisfascimo e democracia.
Ao contrário do que é habitual dizer-se, o facto de se ter combatido Salazar e Marcelo Caetano não transforma ninguém num democrata. Contudo, em Portugal, não só se fez esta equivalência como ainda se identificou anti-salazarismo com antifascismo. O resultado foi, no mínimo, peculiar. Assim, não só os partidos totalitários que combateram Salazar passaram a ser considerados democráticos como, graças a tal identificação, se acabou até a apresentar como antifascistas aqueles que, nos anos 30 do século XX, orgulhosamente se reivindicavam fascistas e que, por isso mesmo, se recusaram, em 1934, a integrar na União Nacional o Movimento Nacional-Sindicalista.
Pode ter-se sido perseguido, maltratado, torturado pelo Estado Novo... e contudo defender-se um regime tão ou mais ditatorial do que o vigente nesse mesmo Estado Novo. Aliás aquilo que vulgarmente designamos por PREC é o desfazer das cumplicidades antifascistas. Se se quiser recorrer a imagens, digamos que entre PS e PCP - os dois partidos que mais integram o património do antifascismo - a ruptura acontece quando a evidência da ocupação do República se torna para o PS um perigo mais efectivo que a memória dos interrogatórios na António Maria Cardoso.
Outra das perversões da identificação entre antisalazarismo, antifascismo e democracia é a que leva a que se considere fascista ou cúmplice com o fascismo quem põe em causa as atitudes e as decisões tomadas por aqueles que se reivindicam antifascistas. Esta espécie de superioridade moral do antifascista está eloquentemente expressa na imprensa da época que tanto o Diário de Notícias como o PÚBLICO têm transcrito todo este ano.
Veja-se por exemplo a edição do PÚBLICO de 16 de Maio. Aí era transcrito o testemunho que, em Maio de 1975, o jornalista Carlos Coutinho fizera chegar ao Tribunal do Barreiro, onde estava a ser julgado um militante da organização armada do PCP, a ARA. Carlos Coutinho depôs a favor de Fernando dos Santos Gonçalves acusado de, em 1965, ter desviado 13 mil contos (65 mil euros) da delegação bancária onde desempenhara as funções de subgerente: "Essse dinheiro saiu de mãos onde não devia estar e foi para mãos onde devia estar. (...) Choca-me ver sentado no banco dos réus um revolucionário; um revolucionário, depois do 25 de Abril, deve julgar e não ser julgado", concluía Carlos Coutinho.
Citações de Lenine, Brecht e Cunhal fundamentaram a tese da defesa de que "um revolucionário, depois do 25 de Abril, deve julgar e não ser julgado". O juiz deu como provados os factos, mas considerou-os amnistiados. Em seguida, pediu desculpa ao réu que estivera um mês na prisão a aguardar julgamento. "Em nome do tribunal, quero dizer-lhe que lamento profundamente este mês de prisão que passou." E por fim abraçou-o. Em perfeita sintonia com as teses da superioridade moral do antifascismo, O Século de 16 de Maio de 1975 compôs o seguinte título: "Militante fascista finalmente amnistiado" e desenvolveu uma prosa exaltante, quase épica: "Julgador e julgado abraçaram-se, logo esse abraço se multiplicando pela assistência, que não prescindiu de saudar o seu companheiro, militante antifascista, ontem restituído à liberdade, e que o aguarda, novamente, nos bancos agora do povo, onde poderá utilizar o curso de economia política que tirou no exílio (...) para a construção de um Portugal democrático e socialista."
No seu tom apologético, este tipo de imprensa nada tem de livre ou democrática. Não se investiga nada. Parte-se do princípio de que o réu - que nem sequer é designado como tal, mas sim como "militante antifascista" - será sempre libertado. Não se pergunta, por exemplo, como se tratou da instrução do processo de modo a que, num mês, o incómodo roubo praticado pela ARA ficasse transformado num gesto precursor do 25 de Abril. Por fim, faz-se apologia da banca nacionalizada como "banca do povo".
As muito citadas tentativas de controlo da imprensa por parte do PCP durante o PREC estão longe de ser suficientes para explicar esta notícia, tal como não explicam os factos nela referidos nem muitos outros milhares de notícias e factos onde a convicção na superioridade moral do antifascismo permitiu que se cometessem os mais variados abusos. De facto, essa convicção existia (e existe) nos sectores mais alargados da sociedade portuguesa.
Foi a generalização dessa convicção que, por exemplo, logo em Agosto de 1974, permitiu que ninguém se interrogasse sobre factos aparentemente comezinhos como o boicote exercido por um conjunto de actores à representação da peça O Último Fado em Lisboa. Os actores, que se apresentaram como antifascistas, ocuparam a sala e o palco, impedindo que os seus colegas representassem e o público visse aquela peça, que eles consideravam uma afronta ao Portugal revolucionário que defendiam. Foi a generalização dessa convicção que ainda hoje leva a que, apesar de fascismo e comunismo serem unanimemente considerados totalitarismos, a expressão anticomunista não tenha o mesmo valor que antifascista. Aliás, a palavra anticomunista imediatamente passou a ser acompanhada pelo adjectivo primário. Ou seja, em abstracto concede-se que se possa ser anticomunista, mas na prática aqueles que assim são apelidados logo ficam enredados num atávico primarismo. Já antifascista é uma expressão usada como uma espécie de glorioso bilhete de identidade.
Infelizmente, a chamada cultura do antifascismo está longe de se esgotar em polémicas serôdias como a que tem tido lugar no PÚBLICO ou em recriações disparatadas sobre o Estado Novo, em que se diz às crianças que, até 1974, as meninas não podiam usar calças nem biquinis e que não se podia aprender a ler.
Ao restringirmos a democracia ao antifascismo, privamos a democracia daquilo que lhe é essencial: o erro. Nas democracias sabe-se que existirão sempre casos de corrupção, abusos de poder ou tráfico de influências e sabe-se também que só a investigação e a denúncia sem censura desses actos os podem travar. Pelo contrário, totalitarismos e autoritarismos negam que no seu seio este tipo de factos possa ocorrer. O escândalo que agora suscitou a divulgação da destruição dos livros das bibliotecas escolares em 1975, tal como a reacção de vários políticos a propósito das investigações do caso Casa Pia - "É o fascismo de novo!" -, assim como a identificação entre autoridade e autoritarismo são bem sintomáticos de como continuamos a preferir o maniqueísmo das culturas "anti" ao exercício da democracia. É mais tentador, de facto, acreditar em magos das finanças ou em grandes comandantes, homens impolutos e morais superiores. Mas convém não esquecer que é precisamente deste caldo de cultura que nasce a impunidade dos crimes.
Helena Matos, jornalista.